quinta-feira, 7 de agosto de 2008

*Photo: Susie Cushner

In[sos]sa

Debaixo do carmim das unhas, há fragmentos do dia ido. O banho lava muitos tipos de sujidade, mas não limpa as cinzas espalhadas pelo excesso de consciência; tampouco o pó sobre os sonhos adormecidos na caixa de papelão que há na garagem. Eu tenho tentado – mas a verdade é que não sei se devo - ser mais feliz do que eu sou. Não sei se me é outorgado, se ouso ousar a querença. É que às vezes uma ventania. E então minhas urgências, ah, as minhas urgências desconhecem carências, cartazes de avisos; fazem-se tão importantes quanto cada uma das minhas não-conquistas. Eu, que nem quero tudo, apenas o que não tenho. Numa dessas noites - de pouco vinho e muita solidão – me percebi mais escura que a sombra, a minha própria, ao meu lado. É claro que não deixei que a pobre notasse a farsa que perseguira toda a vida, a cópia. Pensando ainda em díspares interpretações, lembrei do velho sapateiro do fim da rua da dinda, que dizia que pombos não serviam para nada a não ser sujar a pracinha. Eu, criança, ouvia isso meio descrente, sem saber a resposta, mas imaginando ser, tal inutilidade, algo impossível; não deveria ser esse o único despropósito para a existência de pombos. Hoje em dia, ainda com a mesma crença, sigo sem saber a resposta, estendendo entretando, tal incógnita,à minha própria existência. Há sim os dias em que tudo isso nem importa, e o que vale mesmo é a beleza dura e pontiaguda do instante. Mas, me assolam então, outros dias mais belos, e outros de certo desencanto, em que banhos não são suficientes para dar efeito de ‘novo’ à alma.
Enquanto a inquietude dorme, o coração descansa. Amanhã, refeita do peso da fragilidade de ser o que sou, hei de usar, junto com o chapéu laranja, uma nova esperança. E meias coloridas. É que eu amanheço só para não destoar: sei que sou parte da noite clara (ainda assim, noite); branca feito um Dostoievski, acabo sempre obscurecendo – por meio de contrastes – o fim das tardes. Talvez, na intenção de transformá-las em noites completas, que é quando enxergo melhor. Ou na esperança secreta de que estas acabem por tornar-me, novamente, a menina que sabia o que ia ser quando crescesse.


3 comentários:

Anônimo disse...

Não só o chapéu laranja e as suas meias coloridas criam uma nova esperança. Vc é bem mais do que isso.
Entrei por saudades de suas palavras e idéias.
bjs

C.T.H.

Fabio Rocha disse...

Ah, minha amiga perdida tanto quanto eu, bom te reler... :) Tem surpresa pra você no meu blog, em http://dabusca.blogspot.com/2008/08/selo-prmio-dardos.html

(Aproveita e comenta algum poema que ando carente de amigo comentador) XD

Beijos

Atriz disse...

suas palavras doces e certas se encaixam perfeitamente em mim!

beijo, parabéns pelo belíssimo texto.

Gisele