terça-feira, 19 de agosto de 2008







desiderata


"Falha em subestação deixa 15 cidades sem energia ontem"
Notícia publicada na edição de 18/08/2008,
Jornal Cruzeiro do Sul, Sorocaba.

Entre um arrepio e outro, na pele é que eu te encontro. Você sabe a rima que dá o meu sussurro. Na boca, doce e amargo se encontram, efeito causado pela tua saliva em minha língua. A minha, não. Minha saliva esvaiu-se há tempos, por entre os dentes, um filete em teu pescoço, no teu umbigo, no teu medo da aridez dos tempos de seca. Teu olhar percorre agora distâncias profundas, com a urgência de quem foge do mal, avidez de fome acumulada há mais de três milênios. Há quase certa pena em saciar-se; tolamente; como se o instante, tão esperado, não iniciasse, a cada fim de procura, nova busca. É que somos imperfeitos. Por isso esquecemos. Mas não é o que importa agora. Importa é essa pressa, exponenciada pela lentidão de quem não quer perder nada: a hora do jantar, o mais ínfimo toque, a minimalista quimera. Teu cheiro dá voltas em torno de mim, e me invade rápido, entre doce e violento, como se fugindo do mundo, querendo abrigar-se em meu peito, buscando a proteção do meu afago castamente denso. E eu já não sei onde é meu início e nem quando findo, se é que. (Talvez eu acabe um pouco a cada vez que o mundo te chama para fora). Mas não hoje, não neste agora: o mundo não ultrapassa a porta. Nós sim; nós a transcendemos, penetramos o abstrato peso do concreto dos nossos corpos, com carícias vulgares, de belezas maiores. As melhores. Cabe sim, delicadeza em nossa fúria.
Você dedilhou-me os pêlos, os desejos pueris, o avesso do coração. Pelo olhar você me adivinha. Eu cedo, me abandono. Teu sopro leve em minha pele tira proveito da desistência e me alça, me espalha aos quatro ventos, me faz pairar alto, sobre o tempo, sobre o cansaço da espera, acima do sujo do chão dos dias. Brincante, a tua respiração em minha pele demora o segundo infinito e exato para que eu desperte do aleive errante dos dias e me perceba:
tua,
amada,
e eterna.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

*Photo: Susie Cushner

In[sos]sa

Debaixo do carmim das unhas, há fragmentos do dia ido. O banho lava muitos tipos de sujidade, mas não limpa as cinzas espalhadas pelo excesso de consciência; tampouco o pó sobre os sonhos adormecidos na caixa de papelão que há na garagem. Eu tenho tentado – mas a verdade é que não sei se devo - ser mais feliz do que eu sou. Não sei se me é outorgado, se ouso ousar a querença. É que às vezes uma ventania. E então minhas urgências, ah, as minhas urgências desconhecem carências, cartazes de avisos; fazem-se tão importantes quanto cada uma das minhas não-conquistas. Eu, que nem quero tudo, apenas o que não tenho. Numa dessas noites - de pouco vinho e muita solidão – me percebi mais escura que a sombra, a minha própria, ao meu lado. É claro que não deixei que a pobre notasse a farsa que perseguira toda a vida, a cópia. Pensando ainda em díspares interpretações, lembrei do velho sapateiro do fim da rua da dinda, que dizia que pombos não serviam para nada a não ser sujar a pracinha. Eu, criança, ouvia isso meio descrente, sem saber a resposta, mas imaginando ser, tal inutilidade, algo impossível; não deveria ser esse o único despropósito para a existência de pombos. Hoje em dia, ainda com a mesma crença, sigo sem saber a resposta, estendendo entretando, tal incógnita,à minha própria existência. Há sim os dias em que tudo isso nem importa, e o que vale mesmo é a beleza dura e pontiaguda do instante. Mas, me assolam então, outros dias mais belos, e outros de certo desencanto, em que banhos não são suficientes para dar efeito de ‘novo’ à alma.
Enquanto a inquietude dorme, o coração descansa. Amanhã, refeita do peso da fragilidade de ser o que sou, hei de usar, junto com o chapéu laranja, uma nova esperança. E meias coloridas. É que eu amanheço só para não destoar: sei que sou parte da noite clara (ainda assim, noite); branca feito um Dostoievski, acabo sempre obscurecendo – por meio de contrastes – o fim das tardes. Talvez, na intenção de transformá-las em noites completas, que é quando enxergo melhor. Ou na esperança secreta de que estas acabem por tornar-me, novamente, a menina que sabia o que ia ser quando crescesse.